No início da noite da última quinta-feira, enquanto o Brasil acompanhava o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, Donald Trump fez um anúncio que deixou o mundo ainda mais perplexo com seu governo. O novo conselheiro de segurança nacional, cargo decisivo da Casa Branca no que diz respeito ao uso da força militar americana, será John Bolton, um dos arquitetos da invasão ao Iraque comandada pelos Estados Unidos em 2003. Bolton, ex-embaixador da ONU, é conhecido por posturas militaristas extremas e seu desdém para diplomacia. Ele também é uma figura que reanima memórias infelizes nos corredores da Itamaraty em Brasília.

Em 1997, ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil conseguiu uma vitória internacional: emplacou o diplomata José Mauricio Bustani na presidência da Organização para a Proibição de Armas Químicas, a Opaq. O órgão, baseado em Haia, na Holanda, tinha uma missão tão nobre quanto complicada – aplicar de fato a Convenção sobre Armas Químicas e tentar livrar o mundo deste tipo de armamento. Em 2013, a Opaq foi agraciada com o Nobel da Paz.

No ano 2000, Bustani foi reeleito por unanimidade, mas não conseguiu completar seu mandato, graças a uma intensa campanha nascida no seio da administração de George W. Bush. Um dos personagens centrais da cruzada foi justamente John Bolton, o agora conselheiro de Trump, que, na época, era subsecretário de Estado para o Controle de Armas.

O embaixador José Maurício Bustani durante entrevista no Palácio do Itamaraty, em Brasília (DF) em março de 2003.

Foto: Lula Marques/Folhapress

“Ele entrou no meu escritório, me ameaçou e deu 24 horas para que eu renunciasse”, relembra Bustani em entrevista ao The Intercept Brasil. “Foi um ultimato. Ele disse: ‘Nós sabemos onde estão seus filhos’. Na época, os dois estavam em Nova York, nos Estados Unidos. Eu respondi: ‘Eu não tenho medo de nada e nem eles. Se vocês quiserem, me ponham para fora”. Em 2013, ao jornal The New York Times, Bolton confirmou o encontro, mas negou a versão do brasileiro. O jornal não cita a ameaça.

A reunião aconteceu no início de 2002, pouco depois dos atentados terroristas do 11 de Setembro. A atrocidade, que chocou e transformou o mundo, fora cometida pela Al-Qaeda, organização comandada pelo saudita Osama Bin Laden, mas o governo dos Estados Unidos incluiu em sua lista de inimigos o regime de Saddam Hussein no Iraque, que nada teve a ver com o ataque, nem seu idealizador.

Aquele episódio foi visto, entretanto, como uma janela de oportunidade para um grupo de integrantes da ala neoconservadora do Partido Republicano, obcecada com Saddam e com a “missão incompleta” de Bush pai, que deflagrara a Guerra do Golfo no início dos anos 1990, mas retrocedera antes de derrubar o ditador iraquiano.

John Bolton foi um dos ideólogos mais vociferantes dessa turma. Em 1998, ele foi um dos signatários de um manifesto de republicanos intervencionistas que pedia ao então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que considerasse seriamente a possibilidade de “regime change” (mudança de regime) no Iraque. Também assinaram o documento figuras como Paul Wolfowitz, Donald Rumsfeld, Richard Armitage e outros republicanos que ocupariam cargos chaves no governo Bush. Ao longo de 2002 e 2003, essas pessoas enganaram a opinião pública internacional com “evidências” falsas dos planos de Saddam e, assim, justificaram a invasão. Não existia arsenal de armas químicas no Iraque.

No início de 2002, quando Bolton visitou Bustani na Holanda, seu papel era determinante na empreitada dos homens de Bush para tentar convencer o mundo de que Saddam Hussein era uma ameaça por supostamente possuir armas de destruição em massa. O diplomata brasileiro diz que virou alvo de Washington quando obteve do governo iraquiano, no fim de 2001, um aceno positivo a respeito da possibilidade de aderir à Convenção das Armas Químicas. Isso obrigaria Bagdá a listar todo seu arsenal e permitir a entrada de funcionários da Opaq. “Se eu entrasse com os meus inspetores e mostrasse que não havia nada, a lógica da invasão acabaria”, diz Bustani.

Em março de 2002, a ameaça se tornou real. Washington apresentou à Opaq uma moção acusando Bustani de gerenciar mal o setor financeiro da entidade. O conselho consultivo do órgão, no entanto, rejeitou o pedido. Bolton e sua turma não desistiram. No mês seguinte, os EUA convocaram uma conferência geral da organização e, após intensa pressão sobre os países-membros, conseguiram destituir Bustani, com 48 votos a favor, 7 contra (incluindo o do Brasil) e 43 abstenções. Foi a primeira vez na história da ONU que um diretor era afastado por voto em meio a seu mandato.

Manifestação contra o pedido de demissão do embaixador brasileiro José Maurício Bustani da direção da Organização para Proscrição das Armas Químicas, na frente da embaixada dos EUA no Rio de Janeiro, março de 2002.

Foto: Alexandre Campbell/Folhapress

“O resultado disso foi a guerra e isso me frustra muito, ainda mais porque fui traído pelo meu governo”, diz Bustani.

A guerra no Iraque continua após 15 anos sangrentos em que entre 100 e 600 mil pessoas foram mortas, a maioria civis. O conflito ajudou a criar o Estado Islâmico e desestabilizou uma região já frágil diante décadas de intervenção americana. Iraque, Síria, Iêmen, Líbia e Afeganistão são zonas de guerra ativas e muitos outros países da região estão instáveis.

Bustani acusa o Brasil de não defender seu mandato e não fazer campanha na votação que culminou com sua queda. “O Bolton disse que tinha um acordo com o governo brasileiro, eu disse que desconhecia isso, mas depois vi que era verdade”, afirma. Para o diplomata, o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Lafer, recebera de Fernando Henrique Cardoso uma ordem de não desagradar os americanos.

Eu liguei para Lafer. Ele contesta essa versão. “Bolton e os Estados Unidos de fato fizeram pressão para o afastamento do Bustani”, afirma o ex-ministro. A ideia de Washington, segundo ele, era ter liberdade de ação no Iraque sem as amarras das organizações internacionais, empreitada que a atuação do diplomata brasileiro poderia atrapalhar.

Neste contexto, diz Lafer, o governo FHC examinou a questão e decidiu tratá-la apenas no plano multilateral. “Decidimos que não faríamos disso um tema da agenda bilateral com os Estados Unidos e assim o fizemos, defendendo a manutenção do Bustani na posição”. A defesa foi de todo fraca. Nas palavras do próprio Lafer, os EUA “passaram um rolo compressor” na votação da Opaq.

Após sua destituição, Bustani se voltou contra Lafer e FHC. Em uma entrevista ao canal britânico BBC, acusou o Brasil de abandoná-lo. Como resultado, foi destituído também da posição de cônsul-geral em Londres, para onde tinha sido enviado de forma temporária. Na volta a Brasília, ficou cerca de um ano sem função no Itamaraty. Só retomou a carreira em 2003, quando Lula, recém-eleito, o nomeou embaixador em Londres.

Também em 2003, a Organização Internacional do Trabalho julgou uma reclamação de Bustani contra sua remoção da Opaq. Para a OIT, o processo liderado por Bolton foi ilegal e nulo. O diplomata brasileiro recebeu uma indenização, que doou à própria Opaq.

Atualmente aposentado, após ser também embaixador em Paris, Bustani avalia que a nomeação de Bolton para o cargo de conselheiro de segurança nacional é um “grande equívoco” de Trump. “Ele não tem a capacidade nem o talento para esse cargo. É um homem bruto e brutal, desajustado e desequilibrado, não é de diálogo,” afirma. Nisso, Celso Lafer concorda. “Vejo essa nomeação com muita preocupação”, diz o ex-ministro. “É uma personalidade pouco afeita ao diálogo diplomático”.

Ex-comentarista da Fox News, Bolton defende ataques militares tanto ao Irã quanto à Coreia do Norte. Esses países formavam, ao lado do Iraque, o “eixo do mal” de George W. Bush. Talvez Bolton se veja agora diante de uma nova missão incompleta.

Foto de destaque: John Bolton na Casa Branca com então-Presidente George W. Bush em agosto de 2005, no dia em que foi indicado para assumir o cargo de embaixador da ONU.